Publicada em 2005, nesta obra José Saramago
traz um cenário inusitado por ser algo inconcebível para a finitude da existência
humana: a ausência da morte. Já no inicio, a frase tema: “No dia seguinte ninguém morreu”.
O resto será um desmembramento desta tese inicial e uma análise
filosófica e sociológica dos impactos de semelhante acontecimento em um mundo
que, de certa forma, tem a morte como o limiar de tudo o que faz.
A obra divide-se em três partes: na
primeira, é narrada a repercussão da ausência da morte na cidade e a reação
diante de tal fato; na segunda, a morte é personificada e envia uma carta
comunicando seu retorno e informando também que cada habitante que teve seu
destino adiado, teria um prazo de uma semana para colocar sua vida em ordem e
depois morrer; na terceira, um violoncelista que recebera uma dessas cartas
dialoga com a morte, de forma que ela seja humanizada.
A ausência de atividade da morte
provoca um estado de desconforto, refletido principalmente nas famílias,
hospitais, governo, funerárias, cemitérios, seguradoras e muitas estruturas que
vivem da logística criada para viabilizar conforto aos vivos. É como se ela
fosse um fator insubstituível para o bom andamento da estrutura vigente e para
a renovação do ciclo vital. Talvez esse estado de latência seja o que permite
conhecer o real temor diante da morte: o medo de que ela traga um estado de
inércia intransponível, de modo que tudo fique sucumbido a se cristalizar no
tempo e no espaço, em uma completa e eterna inatividade. Por outro lado, a
terrível ideia de eternidade passa a ser ainda mais insustentável aos mortais,
uma vez que a existência mundana não é suficiente para responder aos mistérios
que um possível além-mundo possa encerrar. Desta forma, não morrer seria estar
eternamente preso a não descoberta do sobrenatural e, portanto, ao conformismo
com o mundo presente.
Na materialização da morte quando
esta se apaixona pelo violoncelista, vê-se um interessante paradoxo. A começar
pela sua forma física nos moldes de uma linda mulher, diferentemente da figura
consagrada pelas artes, pinturas e literaturas medievais, como um esqueleto em
vestes monásticas e uma foice à mão. O envolvimento da morte com o artista traz
à tona uma relação contraditória: a morte se apaixona pela vida. Dessa forma, o
anúncio de seu retorno é colocado diretamente em xeque com a natureza de sua
razão de ser e existir.
Como a própria abordagem do tema já
sugere, Saramago dá um tom hilário à questão. As reações das estruturas sociais
frente à ausência da morte são evidenciadas de forma cômica, a fim de
demonstrar que os princípios econômicos, éticos, políticos e religiosos, que
regem a sociedade são vulgares e fúteis diante das verdadeiras aspirações
humanas. O regime capitalista e empresarial é tão frágil que se torna o
primeiro a entrar em colapso. No entanto, o medo da inflexibilidade da morte é
verdadeiro. Quando ela entra em greve, muitos ensinamentos são percebidos à
medida que confronta diretamente os valores já consagrados. Com isso, Saramago
mostra que os princípios éticos defendidos socialmente são deixados de lado
quando uma crise abrange o contexto geral, lançando um desafio cruel aos
filósofos e religiosos.
Um dos grandes méritos da obra do
escritor português, é que ela não encerra em si todas as reflexões possíveis,
mas instiga ao leitor refletir a seu modo, as implicações de tal ausência. Com
isso, pode embarcar em avaliações distintas com base no ângulo que melhor lhe
convier. Enfim, a obra permite uma verdadeira jornada filosófica sobre a
necessidade substancial de que as coisas se findem em algum momento, a fim de
garantir o estado de estabilidade que elas proporcionam. Ter consciência desse
fim é condição necessária para vivenciar bem o espaço limite em que a vida se
manifesta.
SARAMAGO,
José. As Intermitências da Morte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005. 2007 pgs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário