sábado, 1 de dezembro de 2012

As Intermitências da Morte (José Saramago)


          Publicada em 2005, nesta obra José Saramago traz um cenário inusitado por ser algo inconcebível para a finitude da existência humana: a ausência da morte. Já no inicio, a frase tema: “No dia seguinte ninguém morreu”.  O resto será um desmembramento desta tese inicial e uma análise filosófica e sociológica dos impactos de semelhante acontecimento em um mundo que, de certa forma, tem a morte como o limiar de tudo o que faz.
            A obra divide-se em três partes: na primeira, é narrada a repercussão da ausência da morte na cidade e a reação diante de tal fato; na segunda, a morte é personificada e envia uma carta comunicando seu retorno e informando também que cada habitante que teve seu destino adiado, teria um prazo de uma semana para colocar sua vida em ordem e depois morrer; na terceira, um violoncelista que recebera uma dessas cartas dialoga com a morte, de forma que ela seja humanizada.
            A ausência de atividade da morte provoca um estado de desconforto, refletido principalmente nas famílias, hospitais, governo, funerárias, cemitérios, seguradoras e muitas estruturas que vivem da logística criada para viabilizar conforto aos vivos. É como se ela fosse um fator insubstituível para o bom andamento da estrutura vigente e para a renovação do ciclo vital. Talvez esse estado de latência seja o que permite conhecer o real temor diante da morte: o medo de que ela traga um estado de inércia intransponível, de modo que tudo fique sucumbido a se cristalizar no tempo e no espaço, em uma completa e eterna inatividade. Por outro lado, a terrível ideia de eternidade passa a ser ainda mais insustentável aos mortais, uma vez que a existência mundana não é suficiente para responder aos mistérios que um possível além-mundo possa encerrar. Desta forma, não morrer seria estar eternamente preso a não descoberta do sobrenatural e, portanto, ao conformismo com o mundo presente.
            Na materialização da morte quando esta se apaixona pelo violoncelista, vê-se um interessante paradoxo. A começar pela sua forma física nos moldes de uma linda mulher, diferentemente da figura consagrada pelas artes, pinturas e literaturas medievais, como um esqueleto em vestes monásticas e uma foice à mão. O envolvimento da morte com o artista traz à tona uma relação contraditória: a morte se apaixona pela vida. Dessa forma, o anúncio de seu retorno é colocado diretamente em xeque com a natureza de sua razão de ser e existir.
            Como a própria abordagem do tema já sugere, Saramago dá um tom hilário à questão. As reações das estruturas sociais frente à ausência da morte são evidenciadas de forma cômica, a fim de demonstrar que os princípios econômicos, éticos, políticos e religiosos, que regem a sociedade são vulgares e fúteis diante das verdadeiras aspirações humanas. O regime capitalista e empresarial é tão frágil que se torna o primeiro a entrar em colapso. No entanto, o medo da inflexibilidade da morte é verdadeiro. Quando ela entra em greve, muitos ensinamentos são percebidos à medida que confronta diretamente os valores já consagrados. Com isso, Saramago mostra que os princípios éticos defendidos socialmente são deixados de lado quando uma crise abrange o contexto geral, lançando um desafio cruel aos filósofos e religiosos.
            Um dos grandes méritos da obra do escritor português, é que ela não encerra em si todas as reflexões possíveis, mas instiga ao leitor refletir a seu modo, as implicações de tal ausência. Com isso, pode embarcar em avaliações distintas com base no ângulo que melhor lhe convier. Enfim, a obra permite uma verdadeira jornada filosófica sobre a necessidade substancial de que as coisas se findem em algum momento, a fim de garantir o estado de estabilidade que elas proporcionam. Ter consciência desse fim é condição necessária para vivenciar bem o espaço limite em que a vida se manifesta.

SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 2007 pgs.

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