domingo, 17 de junho de 2012

O Pagador de Promessas (Dias Gomes)

       Escrito em 1959, O Pagador de Promessas é uma novela que retrata de forma clara, divertida e concisa a expressão popular brasileira da devoção e a miscigenação religiosa em seu contexto cultural. Desta forma, é possível distinguir também um contexto social de classes no qual cada personagem é moldado pelo seu papel social que desempenha.
Zé do Burro é um humilde penitente que, acompanhado de sua mulher Rosa, acordara cedo e se dirigira com uma enorme cruz à porta da Igreja Santa Bárbara, em Salvador. Pouco depois, aparecem o gigolô Bonitão e a prostituta Marli, envoltos numa penumbra de exploração sexual. Aproveitando-se da ingenuidade de Zé do Burro e da manifesta insatisfação sexual de Rosa, Bonitão propõe levá-la a um lugar que pudesse repousar, o que Zé do Burro aceita de bom grado. O movimento na praça da matriz se inicia com a chegada do sacristão, da beata e do Padre Olavo. Até então, tudo não passava de uma rotina normal em que mais um devoto agradecido desejava cumprir a promessa feita, muito embora a natureza dessa promessa se transformasse no motivo do grande alvoroço.
            O burro de Zé, Nicolau, havia se ferido gravemente com a queda de uma árvore. Desesperado, Zé havia feito a promessa de que, caso o animal escapasse à morte, entraria na igreja com uma enorme cruz. No entanto, Zé havia feito a promessa a Iansã (nome usado para designar Santa Bárbara na cultura afro) em um centro de candomblé, por intermédio das rezas do Preto Zeferino. Além do mais, a promessa envolvia Zé do Burro em um conflito de divisão de terras. Tal sincretismo se revela como inconcebível para o pároco da igreja que imediatamente manda fechar as portas. Mais tarde, surgem outras figuras para ampliar a dimensão do impasse: Galego, o dono do bar; Minha tia, vendedora de comidas típicas; Dedé Cospe-rima, repentista popular. A presença de um guarda enaltece a gravidade do caso e a chegada de um repórter oportunista dá uma dimensão sensacionalista à medida que retrata a imagem de Zé do Burro como o injustiçado. Porquanto, tudo fica mais apimentando quando Marli apronta um escândalo ao revelar que Rosa havia transado com seu companheiro. Com a chegada do Monsenhor como representante da igreja, este tenta negociar com Zé dizendo-lhe que concebia sua promessa como tendo sido cumprida. No entanto, a Zé somente satisfaria quando a cruz estivesse dentro da igreja, conforme prometido a Iansã. Essa oposição entre relutância de Zé e a resistência dos clérigos fariam com que a história ganhasse corpo e chegasse a consequências drásticas.
            Na narrativa da tragédia vivida pelo penitente, é possível distinguir a natureza egoísta de cada personagem. Cada um busca aproveitar da situação para servir a seus próprios interesses: o dono do bar comemora o aumento das vendas, a mulher de Zé o desjejum sexual, o repórter vibra com a matéria sensacionalista em primeira mão. Por outro lado, a Zé somente interessa cumprir com o prometido, não lhe importando ter de enfrentar o poder eclesiástico, a infidelidade conjugal ou a repressão policial. Outro aspecto interessante do fato está na intolerância religiosa, evidenciada pelo autoritarismo dos clérigos, como também a inércia do poder público, representado pelas autoridades policiais presentes. Desse modo, o que a princípio seria uma questão de divergência cultural e religiosa, acaba se tornando uma questão criminal. Ficam evidentes também o risco de uma ideologia rígida que, para ser preservada, permite que seja levada a consequências desumanas.

GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 3ª ed.. 158 pgs.

Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 1962:

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