Escrito em 1959, O Pagador de Promessas é uma novela que
retrata de forma clara, divertida e concisa a expressão popular brasileira da
devoção e a miscigenação religiosa em seu contexto cultural. Desta forma, é
possível distinguir também um contexto social de classes no qual cada
personagem é moldado pelo seu papel social que desempenha.
Zé do Burro é um
humilde penitente que, acompanhado de sua mulher Rosa, acordara cedo e se
dirigira com uma enorme cruz à porta da Igreja Santa Bárbara, em Salvador.
Pouco depois, aparecem o gigolô Bonitão e a prostituta Marli, envoltos numa
penumbra de exploração sexual. Aproveitando-se da ingenuidade de Zé do Burro e
da manifesta insatisfação sexual de Rosa, Bonitão propõe levá-la a um lugar que
pudesse repousar, o que Zé do Burro aceita de bom grado. O movimento na praça
da matriz se inicia com a chegada do sacristão, da beata e do Padre Olavo. Até
então, tudo não passava de uma rotina normal em que mais um devoto agradecido desejava
cumprir a promessa feita, muito embora a natureza dessa promessa se
transformasse no motivo do grande alvoroço.
O
burro de Zé, Nicolau, havia se ferido gravemente com a queda de uma árvore.
Desesperado, Zé havia feito a promessa de que, caso o animal escapasse à morte,
entraria na igreja com uma enorme cruz. No entanto, Zé havia feito a promessa a
Iansã (nome usado para designar Santa Bárbara na cultura afro) em um centro de
candomblé, por intermédio das rezas do Preto Zeferino. Além do mais, a promessa
envolvia Zé do Burro em um conflito de divisão de terras. Tal sincretismo se
revela como inconcebível para o pároco da igreja que imediatamente manda fechar
as portas. Mais tarde, surgem outras figuras para ampliar a dimensão do impasse:
Galego, o dono do bar; Minha tia, vendedora de comidas típicas; Dedé
Cospe-rima, repentista popular. A presença de um guarda enaltece a gravidade do
caso e a chegada de um repórter oportunista dá uma dimensão sensacionalista à
medida que retrata a imagem de Zé do Burro como o injustiçado. Porquanto, tudo
fica mais apimentando quando Marli apronta um escândalo ao revelar que Rosa
havia transado com seu companheiro. Com a chegada do Monsenhor como
representante da igreja, este tenta negociar com Zé dizendo-lhe que concebia
sua promessa como tendo sido cumprida. No entanto, a Zé somente satisfaria
quando a cruz estivesse dentro da igreja, conforme prometido a Iansã. Essa
oposição entre relutância de Zé e a resistência dos clérigos fariam com que a
história ganhasse corpo e chegasse a consequências drásticas.
Na
narrativa da tragédia vivida pelo penitente, é possível distinguir a natureza
egoísta de cada personagem. Cada um busca aproveitar da situação para servir a
seus próprios interesses: o dono do bar comemora o aumento das vendas, a mulher
de Zé o desjejum sexual, o repórter vibra com a matéria sensacionalista em
primeira mão. Por outro lado, a Zé somente interessa cumprir com o prometido,
não lhe importando ter de enfrentar o poder eclesiástico, a infidelidade
conjugal ou a repressão policial. Outro aspecto interessante do fato está na
intolerância religiosa, evidenciada pelo autoritarismo dos clérigos, como
também a inércia do poder público, representado pelas autoridades policiais
presentes. Desse modo, o que a princípio seria uma questão de divergência
cultural e religiosa, acaba se tornando uma questão criminal. Ficam evidentes
também o risco de uma ideologia rígida que, para ser preservada, permite que
seja levada a consequências desumanas.
GOMES, Dias. O Pagador de Promessas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967. 3ª ed.. 158 pgs.
Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 1962:
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